quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O Grande Individualista

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por João


Embora as assombrações transmitem muitas “sensações intensas”, nem sempre compensam pela redenção da inteligência. Todos nós, como Mário de Andrade, estamos cansados de assombrações. Por isso ele dizia que há muito tempo não temia – nem podia temer - os gigantes! No folclore as lendas sofriam de escassez imaginativa e perdiam suas cores. Mas, fora isso, andava pela metrópole paulistana um outro tipo de assombração, feioso, de dar medo: o indivíduo. Por estranho que pareça, Mário, que tinha enfrentado o medo do escuro, tirava notas harmoniosas, loas e versos sublimes no isolamento – que hoje se tornou zumbi.

Imaginem o grande modernista parado no meio das danças de roda populares do Nordeste, e, de outro lado, o grande folclorista “homem do povo” discutindo vanguardismo nas rodas paulistanas de intelectuais. Sempre deslocado via a si mesmo como um “vulcão de complicações”. Sem dúvida que as preocupações artísticas, sociais e históricas convivem com o temor individual da loucura, do ridículo, etc. Só os bobinhos achariam que se trata do mesmo problema, já que, ao contrário, sabe-se muito bem que estão desencontrados e ameaçados de divórcio. Aí está a assombração: somos nós os zumbis. Mário de Andrade habitava o centro desta discórdia: a ética sempre cobrando atitudes duras, e a compreensão da própria miséria sempre pedindo que sejamos amáveis. Desafio bom para as almas halterofilistas.

Permito-me citar um exemplo numa “croniquinha” do autor, intitulada “Pessimismo Divino”. Mário defende abertamente que a linguagem é incapaz de expressar a totalidade da vida sensível. Como se fosse naturalmente esta sua função, tenta nos convencer de que a linguagem é uma forma de organizar e complementar a vida sensível. Novamente, só os bobos veriam nisso uma influência dos empiristas ingleses, ou coisa do tipo. Há uma força, um conflito, uma crise, como queiram chamar, que conduz linearmente o questionamento do significado da arte para a reflexão sobre a função da linguagem, desta para experiência empírica e, finalmente, dirigindo-se para a... experiência individual!

Coisas muito pouco inteligentes e melancólicas são ditas atualmente em cima desta mesma visão, tais como: a obra de arte só pode ser entendida pela singularidade do olhar individual; a arte é somente espontaneidade e impressão; só os pretensiosos tentam racionalizar a arte, etc. Mas, ironicamente, não é uma pretensão também, e um preciosismo ultra-sensível irracional, a disputa pelo primeiro lugar no pódio dos mais espontâneos? Mário de Andrade não chega a tanto. Preferia acreditar que não existe espontaneidade absoluta, ou seja, que a linguagem não possui a função de instrumento individual auto-operacional, mas, ao contrário, é uma manifestação social objetiva. É que, em relação aos conservadores que pretendem amarrar a criação com “formalismos de latrina”, torna-se necessário defendermos o inefável, o sensivelmente inexprimível da arte... Assim era pouco ou mais ou menos um grande individualista: sempre enfrentando o perigo da verdade, que é uma bomba lançada na mão dos outros com a esperança de que reste alguma coisa de útil depois da explosão necessária...

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