domingo, 28 de novembro de 2010

A Matemática da Guerra Civil

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por João


Escrever sobre um assunto importante requer minimamente o desenvolvimento de um ponto novo de inflexão que forneça alguma contribuição relevante para o debate. Problema ainda maior, então, quando se tem compromisso inadiável com a clareza. A crônica parece facilitar a tarefa, pois, não é inútil dizer, as correlações insuspeitadas e aleatórias feitas no cotidiano são o combustível do gênero –o risco é a extrapolação imaginativa daquilo que pode beirar o incomunicável.

Pode-se carecer também de motivação decisiva que leve a nos aprofundar num assunto quando há conclusões precipitadas, de antemão já conhecidas. A guerra em curso no Rio de Janeiro, manifestação da barbárie social em que vivemos, dispensa o empenho crítico, pois, no final das contas, todos sabem: é a barbárie novamente. Trata-se de uma consciência desencorajada, incapaz, talvez, de construir referencias sólidos, invioláveis à aparência dos fatos. A existência de princípios éticos incomoda o despropósito total da vida das pessoas. Sinônimo de dogmatismo, embora saibamos que a covardia espiritual e a condescendência pessoal em relação ao capitalismo, por exemplo, nunca fez dele, absolutamente, um sistema mais humano. E nem o contrário, certamente.

Mas, para uma crítica que procura mostrar a falsidade de certas convicções, basta lembrar a velha máxima segundo a qual a ideologia é a negação da essência dos fatos e, ao mesmo tempo, produto orgânico deles. Dela devemos partir, portanto, e não simplesmente taxá-la de mentirosa. Não há porque ser indiferente à mentira, nem tampouco ao erro, pois eles são, no final das contas, o único instrumento de que dispomos para jogar luz nos parâmetros mais recônditos da verdade. Por esta linha de raciocínio tentarei abordar o tema da guerra civil em curso no Rio de Janeiro. Concedido, desde já, total atenção e respeito imparcial às diversas interpretações que a opinião pública vem dando em relação ao assunto.

Felicita-se a presença das forças armadas nos morros. Forças que estão a mando do bem, segundo dizem, com seu aspecto de farda enegrecida, e trambolho de aço engatilhado. O impulso do Estado é destrutivo, não há dúvida e todos sabem; e o discurso da paz incondicional fez uma concessão à razão extraordinária que nesse caso justifica a destruição: combater o crime organizado. Sancionam-se ares divinos, mas a seguinte pergunta mesmo assim ainda paira no ar: o que impede um soldado que sobe o morro armado, passando em frente aos barracos atrás de traficantes, de entrar, noutra situação, nestes mesmos barracos e exterminar todo mundo? Ora, se já admitiram que o objetivo é matar, e isto se tornou aceitável nas atuais circunstâncias, porque não admitir também que a guerra é pela propriedade, pelo território, e, sobretudo, pelo direito de dispor da vida das pessoas que ali vivem?

Já ouvi analogias com a escravidão; os morros seriam verdadeiras senzalas onde meia dúzia de escravos, a mando do barão (o próprio Estado), escaparam ao controle do mesmo. Foram feitas também analogias inevitáveis com a ditadura, às imagens de tanques nas ruas correspondendo à fragilidade do Estado. Uma e outra são hipóteses, mas vamos partir do que diz a mídia, ou seja, que a população precisa escolher entre o bem ou o mal, o céu ou o inferno, traficantes homicidas ou anjos fardados. Mas e o purgatório? Quer dizer, e se a população não escolhesse nem um nem outro, mas defende-se a si própria?

Interpretações conhecidas de todos nós sobre o assunto não chegam a se manifestar. Reações esperadas, probabilidades morais, toda espécie de conteúdos subjetivos. O reservatório informe e larvar, mas fecundo, de onde emerge as simplificações mais deformadoras da realidade. Nesse passo, adiantando-se a um futuro óbvio, é possível ver no discurso imbecilizador e fascista da TV globo, por exemplo, a lógica implícita de uma futura defesa da militarização da máquina estatal –seria diferente da ditadura, eles dirão, da mesma forma como dizem não se tratar de ditadura o que ocorre no Rio, e da mesma forma, ainda, como, no tempo da ditadura seus defensores não se achavam, evidentemente, ditadores.

O combate à ideologia e ao senso-comum só é possível quando identificamos seu mecanismo, para nos adiantarmos a suas manifestações e, infelizmente, quase sempre, vê-las confirmarem-se na prática. O imediato é sempre tarde demais no debate ideológico; o presente já é passado, sua materialização é praticamente imbatível quando se torna ideologia disseminada: irracionalidade sistematizada. Trata-se de um fruto que já cai podre do galho.

Como disse, sendo a ideologia fruto orgânico da realidade que procura negar, acaba que a verdadeira raiz dos problemas aparece na contra-luz da falsidade. Dos escombros que restam de uma mentira desmascarada edifica-se naturalmente o edifício da verdade, e basta virar o pescoço para identificá-la em sua plenitude surpreendente. Caso não tenha conseguido nessas poucas linhas fazer a realidade figurar-se como óbvia, não vejo nenhum problema em dizer abertamente qual é a conclusão lógica do que foi dito: a polícia e o exército limpam o terreno para que se reerga e se reestruture o crime organizado de forma mais aproveitável a quem interessa, isto é, sob a bandeira de relações diplomáticas menos conturbadas. A bem da verdade, para uma solução plena teríamos que ver os soldados suicidando-se, pois o Estado é como um velho caixeiro-viajante que só chega nos piores momentos para cobrar a fatura. É tudo tão previsível que uma imprevisibilidade essencial surge nos seguintes termos: até quando os pobres pagarão a conta do jogo irracional de regalias, e sustentarão os assaltos de rapina do do Estado e das classes dominantes?


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